Dolly vai à guerra

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Dolly vai à guerra

      Laerte Codonho, criador dos refrigerantes Dolly, entra com uma ação indenizatória contra os procuradores federais e estaduais que o levaram à prisão e bloquearam seus bens. Ele se diz vítima de má-fé, abuso de direito e perseguição da Coca-Cola. O empresário também contesta a dívida bilionária atribuída a suas empresas e afirma que seu propósito é estabelecer a verdade

Desde que decidiu empreender no ramo de refrigerantes, ainda aos 26 anos, quando idealizou o pioneiro Diet Dolly, o paulistano Laerte Codonho, 57, conheceu tanto o sabor do sucesso quanto o gosto amargo das disputas na Justiça. A primeira delas se deu assim que o primeiro refrigerante dietético do País chegou ao mercado, em 1987. Embora o direito de produção da bebida estivesse garantido por Codonho via sentença judicial, o Centro de Vigilância Sanitária de São Paulo determinou que os estoques já comercializados fossem apreendidos. Começava ali uma história de embates jurídicos. Se, por um lado, eles jamais impediram o espetacular crescimento da marca Dolly, por outro, mesmo após três décadas, parecem estar cada vez mais longe de um final feliz.

No dia 21 de dezembro, Codonho e seus advogados protocolaram duas ações de indenização contra quatro procuradores federais e oito do Estado de São Paulo. Os réus nessas ações foram os responsáveis por decretar a prisão e o sequestro de bens do empresário, em um processo que se baseou em um erro já reconhecido pela Justiça. Foram oito dias de cárcere, sob acusação de fraude fiscal e lavagem de dinheiro. Passados oito meses, porém, não foi oferecida denúncia contra Codonho (o prazo legal é de 60 dias). O criador da Dolly diz que seu intuito ao processar os procuradores é estabelecer a verdade. “Eu sei que vou ganhar. Estou com a razão. Eles me prenderam e me afastaram das empresas por nada”, afirma. Ele também garante que as dívidas atribuídas a suas empresas com a União, estimadas em cerca de R$ 1,5 bilhão, não têm fundamento legal. “Nós não devemos nada. Ao contrário. Temos crédito a receber.”

Para entender o que está por trás dessa intrincada trama — e a inesperada reviravolta protagonizada por Codonho — é preciso mergulhar nos bastidores do bilionário mercado brasileiro de refrigerantes, um setor dominado por empresas agressivas como Coca-Cola e Ambev, distribuidora da marca Pepsi no Brasil. As disputas de Laerte Codonho com a Coca-Cola nunca foram pacíficas. Desde 2003, o empresário acusa a rival de práticas desleais. Ele, que além de ter criado sua própria fórmula de refrigerante, também desenhou o mascote Dollynho e mantém total controle sobre a estratégia de comunicação da empresa, chegou a confeccionar outdoors em que questionava se a Coca-Cola estaria acima da lei, fosse por incluir em sua fórmula um derivado de folha de coca proibido pela legislação brasileira, ou por ter usado empresas de fachada a fim de sonegar impostos.

Em um dos quatro celulares que Codonho usa simultaneamente estão o que ele considera provas da perseguição movida pela Coca-Cola contra seus interesses. Há transcrições de entrevistas com um ex-executivo da multinacional afirmando que a Dolly deve ser eliminada do mercado (leia trechos em destaque abaixo), vídeos e outros documentos que compõem um dossiê completo de como a simples existência de um fabricante nacional afeta os resultados da líder global. Para Codonho, não há dúvida de que o inferno que ele tem vivido nos últimos anos foi criado pela concorrência. Em sua visão, até mesmo o contador Rogério Racucci, com o qual está em litígio sob a acusação de ter-lhe roubado e prejudicado suas empresas ao não pagar os impostos devidos, teria sido plantado pela Coca-Cola.

As fraudes de Raucci foram descobertas em junho de 2016. Um mês depois, Esaú Vespúcio Domingues, sócio minoritário da RD Assessoria Contábil, de Raucci, confessou os crimes em depoimentos à Polícia Federal e ao Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco). “Ele não apenas admitiu o roubo como devolveu bens adquiridos com esses recursos”, diz Codonho. Uma perícia constatou que a consultoria contratada em 2002 para cuidar de toda a contabilidade das empresas ligadas à marca Dolly cometeu uma série de delitos: falsificou chancelas de autenticação bancária em guias de recolhimento de tributos, se apropriou de cheques que deveriam ter quitado débitos fiscais e acordos trabalhistas, além de ter desviado “vultosas somas em dinheiro”.

Codonho calcula que os desvios praticados por Raucci somam R$ 100 milhões, incluindo impostos que a Dolly deixou de recolher. A indadimplênca foi tema de reuniões com a Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE/SP), em que se buscava um acordo relativo aos débitos. Antes que as negociações fossem concluídas, a Dolly foi alvo da operação Clone, deflagrada em maio de 2017 pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Além das acusações de embaraço de fiscalização e organização de fraude fiscal estruturada, foram apontados “créditos de impostos relativos a supostas entradas de insumo nunca comprovadas, emitidas por empresas situadas em outras unidades da federação”. Mas o pior ainda estava por vir — e pegaria Laerte Codonho de pijama, às 6 horas da manhã de 10 de maio de 2018, em sua residência de luxo em um condomínio na Grande São Paulo.

FUNDO FALSO Acompanhados por um helicóptero da TV Globo, agentes federais e estaduais cumpriram medidas cautelares penais contra o empresário: sequestro de bens, quebra de sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão e prisão temporária. Cerca de R$ 170 mil em espécie foram localizados atrás de uma parede com fundo falso, que quase foi demolida porque Codonho alegou não se lembrar da senha de abertura. As medidas contra o empresário se basearam em uma investigação conjunta do Grupo Especial de Repressão aos Delitos Econômicos do Ministério Público (Gedec) e do Grupo de Autuação para Recuperação Fiscal da Procuradoria-Geral do Estado (Gaerfis). Os investigadores contaram com dados de um relatório elaborado pela empresa Neoway Tecnologia Integrada. Como diz Codonho, “é aí que a coisa fica mais interessante”.

A Neoway foi contratada pela PGE/SP em uma licitação para fornecimento de um software de big data (análise de dados). Mas a logomarca da empresa aparece na capa do Procedimento de Investigação Criminal (PIC) 28/17 que culminou nas medidas cautelares contra a Dolly e seu controlador. Segundo Codonho, a empresa é ligada à Coca-Cola e à Ambev por meio de investidores e parcerias. Para ele, há conflito de interesses na contratação da Neoway. Ainda assim, não foi ela que cometeu o erro mais grave por trás da prisão de Codonho. Para embasar a detenção e o sequestro de bens do empresário, os procuradores se basearam em um indício frágil: a compra de imóveis no Brasil por meio de uma offshore sediada no Estado americano de Nevada, a Lumia Capital Industries LLC.

Codonho não nega ter aberto empresas no exterior, mas a Lumia Capital Industries tem outro dono. Entre as empresas que ele abriu fora do País, uma atende pelo nome Lumia Industries, mas não é a que os procuradores afirmam ser de sua propriedade. “No relatório da Neoway aparece a empresa certa. Mas a ação que pede o bloqueio de bens cita a outra”, diz o advogado Guilherme Tilkian, um dos autores da ação de indenização movida por Codonho contra os procuradores que o prenderam. “A contratação da Neoway, nesse caso, é imoral, ainda que ela não tenha errado”, afirma. Para Codonho, o objetivo dos procuradores era quebrar sua empresa, mesmo que não encontrassem nada contra ele. Ao ser detido, o empresário apareceu diante das câmeras com um cartaz no qual se lia, em letras escritas com batom: “Preso pela Coca-Cola”.

Depois da prisão e do sequestro dos bens (incluindo uma Ferrari e três helicópteros), o dono da Dolly foi impedido de entrar nas próprias empresas. “Fiquei quatro meses sem conta-corrente”, afirma. A falta de recursos para gerir o negócio levou ao fechamento de uma fábrica em Tatuí e à demissão de 850 funcionários, um terço da força de trabalho que empregava. A saída foi pedir a Recuperação Judicial, decretada em junho pelo Superior Tribunal de Justiça. Em agosto, as contas das empresas ligadas à Dolly foram liberadas. O que foi recebido nesse ínterim caiu em um limbo — e Codonho tenta agora reaver os valores, ao mesmo tempo em que pretende demonstrar não dever nada à União. No entender do juiz que assimou a recuperação, o dono da Dolly está liberado para gerir seus negócios. “Não existe ação penal contra ele”, diz o advogado Tilkian.

SEGREDO DE JUSTIÇA Em nota enviada por sua assessoria de comunicação, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional afirma que, no caso da prisão e bloqueio de bens, “os Procuradores atuaram de forma exclusivamente técnica e no estrito cumprimento do dever funcional, seguindo as orientações institucionais do órgão, notadamente aquelas aplicáveis aos devedores contumazes”. Ainda segundo a nota, “a atuação da PGFN no caso foi fundamentada em robustos elementos probatórios e caberá ao Poder Judiciário avaliar e proferir a decisão sobre o processo”.

A ação protocolada na 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, em 21 de dezembro, prevê indenização de R$ 1.050.000,00 a Laerte Codonho por dano moral e tem como réus quatro procuradores. O mesmo valor foi estipulado na ação contra os oito procuradores da PGE/SP, protocolada no Tribunal de Justiça do Estado. Procurada pela reportagem da DINHEIRO, a PGE informou:
“A prisão de Laerte Codonho ocorreu em processo criminal que corre em segredo de justiça, a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo”. Para a entidade, a atuação dos procuradores “ocorreu nos termos da lei, em virtude de fraudes fiscais estruturadas, origem de vultosa dívida tributária, conforme constam dos processos judiciais, não havendo novos esclarecimentos.”

OFFSHORE O que se discute na esfera federal em relação ao grupo de empresas ligadas à Dolly é que elas seriam devedoras de quase R$ 1,5 bilhão em impostos, multas e juros, O que foi alegado na medida cautelar que determinou sua prisão é que haveria o risco de o Estado não receber esse valor. Para os investigadores, o empresário estaria blindando seu patrimônio ao usar uma offshore para a compra de imóveis — caso de uma residência de luxo no condomínio residencial Fazenda da Grama, em Itupeva, interior paulista, e de escritórios comerciais na capital. Uma vez provado que a tal offshore não era de Codonho, resta comprovar que ele não deve o que dizem. “Na nossa visão, as cobranças são indevidas”, diz Paulo Antonio Ramirez Assad, um dos advogados que cuidam das questões tributárias de Codonho.

Assad divide os débitos federais atribuídos a Codonho em quatro blocos (confira os valores na tabela acima). Cerca de R$ 330 milhões foram cobrados pelo Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas), instrumento criado pela Casa da Moeda para evitar sonegação das engarrafadoras de bebidas. Outros R$ 310 milhões são relativos à glosa de créditos de IPI de compras da Zona Franca de Manaus. Mais R$ 157 milhões entram na conta da fraude fiscal praticada contra a Dolly pela RD Assessoria. A defesa de Codonho questiona todos esses débitos, afirmando haver fundamentos jurídicos para o não pagamento de cada um deles. Os R$ 30 milhões restantes, inclusive, já foram reconhecidos como indevidos e extintos. No que diz respeito ao Fisco estadual, o empresário também questiona a dívida estimada em R$ 79 milhões pela PGE. Segundo ele, apenas 24% desse valor se refere ao “imposto supostamente inadimplido”. O restante se divide em multa (13%), honorários advocatícios (17%) e juros (46%).

Para lidar com tantos imbróglios jurídicos, Codonho conta com o auxílio de diversos escritórios de advocacia, mas é ele quem coordena a própria defesa — e também os ataques. “Virei um rábula”, diz, referindo-se à expressão usada para descrever um advogado prático, sem diploma. Nas ações movidas contra os procuradores que o prenderam há oito meses, o empresário pede uma indenização individual de R$ 150 mil, valor que ele considera compatível com os rendimentos de cada um. Para a Fazenda Nacional, o “pleito é manifestamente improcedente”. Codonho tem outra visão. “Meu esforço é trazer a verdade à tona.

Não tenho nenhum problema para resgatar a minha imagem. E a empresa é tão viável que está em pé”. Perguntado sobre o motivo de não ter vendido sua empresa quando recebeu uma proposta da Coca-Cola, Codonho diz não ter arrependimentos. Vale a pena manter-se em guerra com a concorrência e os procuradores? “Pergunte-me daqui a dois anos”. Até lá, seu destino é incerto. “Não sei como será minha vida a partir de 31 de janeiro”, afirma, referindo-se ao prazo estipulado para o término da Recuperação Judicial. Não há dúvida de que sua vida renderia uma minissérie de TV. Ele diz que quatro produtoras já o procuraram. As propostas serão avaliadas enquanto o pai do Dollynho vai à guerra contra os procuradores.

 

 

Fonte: ISTOÉ

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